Comentários:
“Mais um livro que leio da estante de
quinquilharias do meu quarto. Comecei a ler um outro livro no mês de agosto,
mas interrompi a leitura para me dedicar a este, Lucíola, de José de Alencar.
Este é o típico livro de ensino médio que os professores nos mandam ler porque
vai cair em algum conteúdo de uma ou outra disciplina... Confesso, que apesar
de já tê-lo lido, não me recordava de praticamente nada de minha leitura
anterior, o que conferiu uma experiência nova de leitura, como se fosse a
primeira vez. Penso que a maturidade me fez ler o livro com outros olhos e a
compreendê-lo bem melhor, uma vez que o tipo de escrita não é fácil, cheio de
termos arcaicos, típicos da escrita de outrora. Mas apesar de alguns termos
difíceis e das descrições extensas e por vezes metafórica do autor e personagem
central do romance, a história me cativou por completo. Senti a intensidade do
amor quase proibido de Lúcia e Paulo ao longo das páginas, das exigências
sociais e das convenções que atingiam os dois, deixando-os em uma ambivalência
grotesca entre seus sentimentos e seus reais compromissos que cada um tinha
socialmente...
De modo particular, Lúcia, a mais bela e fogosa
cortesã da corte carioca dos velhos tempos me encantou e me fascinou muito, com
sua singeleza d’alma e voluptuosidade do corpo encarnado de um espírito
especialmente singular. Me identifiquei com a personagem pelo fato de nos
últimos tempos sentir-me assim, meio objeto de deleites alheios. Um trecho em
particular, serve-me de ilustração para como me senti através das próprias
palavras de Lúcia:
"Quando lho dei a perceber, ela
respondeu-me:
- Que importa? Contanto que tenha gozado de minha
mocidade? De que serve a
velhice às mulheres como eu?"
Às vezes me sinto assim, meio Lúcia: diáfano,
dúbio, sozinho, cortesão... Justamente servindo as vontades e caprichos de
seres alheios, seres que não hão e nem podem me completar e me oferecer aquilo
que necessito, tão e simplesmente, mas que de tão simples, parece ser impossível
de que me seja destinado... Mas não só de romance, amor e coisas doces vive
esse belo romance nacional. Há humor e partes bem excitantes, se você sabe apreciar
as intenções por detrás das entrelinhas escritas na página do papel. Certos
trechos de Lucíola são bem interessantes por suscitar a lascívia do leitor
imaginativo, como no trecho que abaixo se segue:
"Uma vez levantado o cálice, a contração
muscular foi tão violenta que o cristal espedaçou-se entre as falanges
delicadas. Tinha-se ferido e para estancar o sangue, mergulhou o dedo no meu
copo cheio Sauterne: o áureo licor enrubesceu; e eu esgotei-o até a última gota
num assomo de galanteio romântico.
Lúcia acompanhou o meu movimento com um olhar tão
cheio do que olhava, como se eu lhe bebera a própria vida nessas gotas tinta de
seu sangue.
- Se o bebesse todo!... balbuciou.
- Tu morrias, Lúcia! respondi sorrindo.
- Eu... viveria; e o resto seria pasto dos
vermes, como foi pasto dos homens."
Trecho
forte e instigante de vários significados... Mas enfim, não vou aqui discorrer
sobre eles, ou não terminaria esta postagem mais nunca... Para finalizar, um trecho
não menos digno deste romance impossível de Paulo e Lucíola. Tal trecho lembra-me
o poeta Vinícius de Moares quando diz ‘que não seja imortal, posto que é chama,
mas que seja eterno enquanto dure’ e que durará pra sempre se preservar em si a
lembrança da pessoa amada, por mais que esta parta desta vida, bem como
confessou Mária da Glória, a doce Lúcia, a linda Lucíola, em seu leito de
morte:
‘Eu te
amei por séculos nestes poucos dias que passamos juntos na terra. Agora que a
minha vida se conta por instantes, amo-te em cada momento por uma existência
inteira. Amo-te ao mesmo tempo com todas as afeições que se pode ter neste
mundo. Vou te amar enfim por toda a eternidade’ - Lucíola,
últimos trechos.
Encerro
os meus comentários com a explicação da alusão do título da obra:
‘AO
AUTOR
Reuni
as suas cartas e fiz um livro.
Eis o
destino que lhes dou: quanto ao título, não me foi difícil achar.
O nome
da moça, cujo perfil o senhor desenhou com tanto esmero, lembrou-me o nome de
um inseto.
Lucíola
é o lampiro noturno que brilha de uma luz tão viva no seio da treva e à beira
dos charcos. Não será a imagem verdadeira da mulher que no abismo da perdição
conserva
a
pureza d’alma?
Deixem
que raivem os moralistas.
A sua
história não tem pretensões a vestal. É musa cristã: vai trilhando o pó com os
olhos no céu. Podem as urzes do caminho dilacerar-lhe a roupagem: veste-a a
virtude.
Demais,
se o livro cair nas mãos de alguma das poucas mulheres que lêem neste país, ela
verá estátuas e quadros de mitologia, a que não falta nem o véu da graça, nem a
folha de figueira, símbolos do pudor no Olimpo e no Paraíso terrestre.
Novembro
de 1861.
G. M.
Fica
deste livro o pesar de tê-lo perdido, mas o sabor de tê-lo lido. Espero
sinceramente que quem o encontre leio-o e goste do romance tanto quanto eu. E
espero, quem sabe, talvez, um dia viver um romance tão intenso quanto o que
viveu Maria da Glória – Lúcia – Lucíola.”